Vida e obra de José Saramago
Autodidata, antes de se dedicar exclusivamente à literatura trabalhou como serralheiro, mecânico, desenhista industrial e gerente de produção numa editora.
Iniciou sua atividade literária em 1947, com o romance Terra do Pecado, só voltando a publicar (um livro de poemas) em 1966.
Atuou como crítico literário em revistas e trabalhou no Diário de Lisboa. Em 1975, tornou-se diretor-adjunto do jornal Diário de Notícias. Acuado pela ditadura de Salazar, a partir de 1976 passou a viver de seus escritos, inicialmente como tradutor, depois como autor.
Em 1980, alcança notoriedade com o livro Levantado do Chão, visto hoje como seu primeiro grande romance. Memorial do Convento confirmaria esse sucesso dois anos depois.
Em 1991, publica O Evangelho Segundo Jesus Cristo, livro censurado pelo governo português - o que leva Saramago a exilar-se em Lanzarote, nas Ilhas Canárias (Espanha), onde viveu até a morte. Foi ele o primeiro autor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998.
Entre seus outros livros estão os romances O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984), A Jangada de Pedra (1986), Ensaio sobre a Cegueira (1995), Todos os Nomes (1997), e O Homem Duplicado (2002); a peça teatral In Nomine Dei (1993) e os dois volumes de diários recolhidos nos Cadernos de Lanzarote (1994-7).
Morreu em 18 de junho de 2010, em Lanzarote, Espanha.
Textos narrativos:
O texto
narrativo pode ser escrito em prosa ou em verso. O seu objectivo principal é
representar a realidade, narrando acontecimentos do mundo exterior, verdadeiros
ou verosímeis. Por conseguinte, há sempre um narrador que conta o desenrolar da
acção, sustentada por personagens que se movem num determinado tempo e num
espaço. Este tipo de texto centra-se na terceira pessoa gramatical.
Embora o texto narrativo recorra frequentemente à ficção, por vezes,
funda-se em acontecimentos históricos como é, por exemplo, o caso de Memorial
do Convento, de José Saramago.
Memorial do Convento
Estrutura da obra:
A obra Memorial do Convento apresenta duas histórias
paralelas: remonta a história de Portugal através da construção do Convento de
Mafra por D. João V; e paralelamente conta a história de amor entre Baltazar
sete-luas e Blimunda sete-sóis envolvidos na construção da Passarola – máquina
de voar – idealizada e projectada pelo Padre Bartolomeu Dias.
A primeira história, irónica e crítica, revela
episódios da história portuguesa no tempo da construção do Convento de Mafra,
um grandioso monumento construído pelo rei D. João V, que persuadido pelo
clero, oferece a obra a Deus para que a rainha engravide e lhe dê um herdeiro.
A construção do Convento de Mafra envolve o sacrifício da população pobre,
fazendo muitas vítimas no carregamento da grande pedra para o pórtico. Saramago
satiriza e ridiculariza os hábitos da realeza, desnudando o poder exercido pela
elite e pelo clero sobre o povo oprimido.
A segunda história, com a
qual a primeira se entremeia, é a história de amor, entre Blimunda e Baltazar;
ambos pessoas humildes do povo, que se unem ao Padre Bartolomeu Lourenço no seu
sonho de voar, através da construção de uma máquina, a qual chamam de
passarola.
Acção:
A acção
principal diz respeito à concretização do plano de D. João V – a edificação do
convento. Mas nesta encaixam-se outras acções, constituindo diferentes linhas
de acção que se articulam com a primeira.
1ª linha de
acção: A do rei D. João V
Abrange todas
as personagens da família real e relaciona-se com a segunda linha de acção, uma
vez que a promessa do rei é que vai possibilitar a construção do convento. Esta
linha tem como espaço principal a corte e, depois, o convento, na altura da sua
inauguração, no dia de aniversário do rei.
2ª linha de
acção: A dos construtores do convento
Esta é
a linha principal da história, a par da quarta – a que respeita à construção da
passarola. Esta segunda linha de acção vai ganhando relevo e une a primeira à
terceira: se o convento é obra e promessa do rei, é ao sacrifício dos homens,
aqui representados por Baltasar e Blimunda, que ela se deve. Glorificam-se aqui
os homens que se sacrificam, passam por dificuldades, mas que também as vencem.
3ª linha de
acção: A de Baltasar e Blimunda
Nesta linha
relata-se uma história de amor e o modo de vida do povo português. As duas
personagens (Baltasar e Blimunda) são as construtoras da passarola; a figura
masculina é também, depois, construtora do convento, constituindo-se paradigma
da força que faz mover Portugal – a do povo.
4ª linha de
acção: A de Bartolomeu Lourenço
Esta relaciona-se
com o sonho e o desejo de construir uma máquina voadora. Articula-se com a
primeira e segunda linhas de acção, porque o padre é o mediador entre a corte e
o povo. Também se enquadra na terceira linha, dado que a construção da
passarola resulta da força das vontades que Blimunda tem de recolher para que a
passarola voe.
Narrador:
O narrador é
o produtor da ficção, o estruturador do texto. A sua principal função é a
apresentação dos factos. No entanto, nada é impedimento para manifestar a sua
opinião própria em relação à narração, às personagens, ao tempo, ao espaço ou
ao ambiente social dessa narrativa.
Relativamente
ao estatuto, pode ser homodiegético (com intenção de captar a atenção do
narrador que se sente participante), heterodiegético (na maior parte da obra,
quando narra a acção) ou autodiegético (quando representa um pensamento de uma
personagem).
No que diz
respeito à focalização, o narrador pode ser omnisciente (tem um conhecimento
absoluto tanto sobre as personagens, como sobre as informações dos eventos e
move-se no presente, no passado e, consequentemente, no futuro), ter focalização
interna (a voz plural do narrador revela-se quando é mostrado o ponto de vista
de uma personagem que vive a história) ou ter focalização interventiva (é
revelada quando o narrador tece comentários, juízos, registos de língua e
marcas da contemporaneidade).
Na obra Memorial do Convento, temos um narrador
plurivocal que descreve paisagens, situações, acontecimentos, factos,
ambientes, estados de alma, que apresenta a sua opinião exprimindo juízos de
valor, refletindo, comentando e ironizando, que usa e reinventa provérbios e
ditados populares, que faz referências a obras e a autores, que domina a
história em todos os seus aspectos, que recorre no discurso escrito a marcas
constantes da oralidade, que fala de factos comprováveis e fidedignos ou que
por e simplesmente os inventa. É um narrador conhecedor da época, intimo da
corte, personagem, testemunha, observador, critico do presente, contemporâneo
do leitor, a voz do próprio Saramago.
Tempo:
A
reconstituição da História passa pela ficção, ou, como afirma o próprio José
Saramago, “a História é ficção”. Daí que se perceba o aparente desprezo pelo
tempo cronológico. As referências temporais são escassas ou apresentam-se por
dedução.
O discurso
flui, recuperando vários fragmentos temporais ou antecipando outros. As
analepses são pouco significativas, apenas surgem a justificar projectos
anteriores. O pendor oral ou de monólogo mental e as digressões favorecem
diversas prolepses que conferem ao narrador o estatuto de omnisciência e
transformam o discurso num todo compreensível, apesar de toda a fragmentação.
Espaço:
Físico: dois dos espaços físicos onde se desenrola a acção
são:
·
Lisboa –
espaço fulcral onde se destacam outros micro espaços:
1.
Terreiro do Paço: local onde Baltasar trabalha num açougue, após a sua chegada
a Lisboa. É onde decorre a procissão do Corpo de Deus.
2.
Rossio: aparece no início da obra como o local onde decorrem o auto de fé e a
procissão do Corpo de Deus.
3.
As ruas da capital: espaço onde o povo oprimido e ignorante sofre e,
paradoxalmente vibra com as desgraças dos seus iguais e onde vive as principais
celebrações do calendário religioso.
4.
S. Sebastião da Pedreira: espaço escolhido para a construção da passarola; é o
único espaço que escapa ao poder opressor da igreja e à rígida hierarquia
social da época.
·
Mafra:
espaço escolhido para a construção do Convento, particularmente Vela, que deu
lugar à Vila Nova, à volta do edifício. Nos arredores da obra surge a “ilha
madeira” – local onde se alojam os trabalhadores.
Social: é relatado através de determinados momentos e do
percurso de personagens que tipificam um determinado grupo social,
caracterizando-o. A nível da construção social destaca-se os seguintes
momentos:
·
Procissão da
Quaresma
1.
Excessos praticados durante o Entrudo (satisfação dos prazeres carnais) e
brincadeiras carnavalescas – as pessoas comiam e bebiam demasiado, atiravam
água à cara umas das outras, batiam nas mais desprevenidas, tocavam gaitas,
espojavam-se nas ruas.
2.
Penitência física e mortificação da alma após os abusos durante o Entrudo.
3.
Descrição da procissão
4.
Manifestações de fé que tocavam a histeria enquanto o bispo faz sinais da cruz
e um acólito balança o incensório; os penitentes recorrem à autoflagelação.
Personagens:
Rei D. João: rei vaidoso, egocêntrico, megalómano e libertino;
rico e poderoso – não sabe o que fazer com tanta riqueza; arrogante – a vontade
do rei é divina; tem “medo de morrer”; é ridicularizado pelo narrador que
recorre à caricatura e ao tom irónico na sua descrição.
Baltasar: homem do povo nascido em Mafra; não tem a mão
esquerda; tem a alcunha de sete-sóis; apaixonado por Blimunda; sonhador,
constrói a passarola; morre queimado num auto-de-fé.
Blimunda: mulher misteriosa, fiel, intuitiva e inabalável no
amor; possui o dom da vidência, vê o interior dos corpos; tem a alcunha de
sete-luas; tem uma sabedoria muito própria, é inteligente.
Padre
Bartolomeu de Gusmão: sonhador,
visionário e culto; capelão na corte e amigo de D. João V; nascido no Brasil;
possui um espirito cientifico que o vai afastando da igreja progressivamente; o
seu conhecimento e estudos levam no a interrogar-se acerca dos dogmas
católicos; morre louco em Toledo.
Domenico
Scarlatti: músico italiano, nascido em Nápoles;
talentoso, culto e sonhador; professor de D. Maria Bárbara; a sua música possui
um poder curativo e inebriante.
O povo: populares anónimos, analfabetos e oprimidos;
trabalhadores humildes; sacrificados e sujeitos à exploração dos poderosos;
elevados a herói pelo narrador.
Simbologia:
Três: De acordo com a numerologia simbólica, podemos
constatar, que ambos os nomes (Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas)
representam perfeição, totalidade e até magia, sugeridas
pela extensão trissílaba (e aqui reside a simbologia do
número três, revelador de uma ordem intelectual e espiritual traduzida na
união do céu e da terra).
Quatro: O número quatro está associado à transgressão
religiosa já que a junção de um quarto elemento, Domenico Scarlatti, faz com
que se deixe o número divino (três) para se passar ao símbolo da totalidade e à
imagem da Terra. Quatro são as fases da Lua, cujo ciclo influencia a vida de
Blimunda Sete-Luas, que quando é Lua Nova pode estar em jejum sem que veja o
interior das coisas.
Número Sete:
Data e hora da sagração do convento;
sete anos vividos em Portugal pelo músico Scarlatti; sete vezes que Blimunda
passa por Lisboa à procura de Baltasar; sete igrejas visitadas na Páscoa; sete
bispos que baptizaram Maria Francisca; sete sóis de ouro e de prata colocados
no altar-mor. A sua presença, no nome de Blimunda e Baltasar, tem um
significado dual, uma vez que se liga à mudança de um ciclo e renovação
positiva.
Nove: Representa a gestação, a renovação e o nascimento. O
número nove surge a simbolizar insistência e determinação quando Blimunda
procura Baltasar durante 9 anos. Este número encerra também simbolicamente a
ideia de procura pois, o que realmente acontece a Blimunda após os 9 anos de
busca é que reencontra finalmente Baltasar, não como um encontro físico, mas
místico e completo.
Sol: Associado a Baltasar e ao povo, sugere a ideia
de vida, de renovação de energias (o povo trabalha até à exaustão no
convento, Baltasar constrói uma máquina, mesmo depois de amputado). Como o Sol,
que todos os dias tem de vencer os guardiães da noite (mitologia antiga), também
Baltasar vence as forças obscuras da ignorância e da intolerância ao
voar.
Lua: Símbolo do ritmo biológico da Terra, traduz
a força vital que é representada pelas vontades recolhidas por
Blimunda para fazer voar a passarola. Tradicionalmente a Lua simboliza, por não
ter luz própria, o princípio passivo do sol. No entanto, a obra revoluciona o
conceito da Lua ao dar a Blimunda capacidades sobrenaturais que dependem das
fases da lua, tornando-a tão relevante como o sol. Sol e Lua: simboliza a
união como um todo, porque são o verso e o reverso da mesma realidade, o dia.
Passarola: Traduz a harmonia entre o sonho e a sua
realização. Graças ao sonho, foi possível juntar a ciência, o trabalho
artesanal, a magia e a arte, para fazer a passarola voar. Simboliza o elo de
ligação entre o céu e a terra. É tanto o símbolo da concretização do sonho,
representando assim também a libertação do espírito e a passagem a outro estado
de consciência, uma vez que que esta é igualmente um símbolo da ligação do céu
e da terra, pois ousa sair do domínio dos homens e entrar no domínio de Deus.
Por outro lado é um símbolo dual, pois é por sua causa que nasce
a Trindade terrestre, mas também é o motivo de separação desta.
A crítica:
Memorial do Convento apresenta-se desde logo como uma crítica cheia de
ironia e sarcasmo à opulência de Rei e de alguns nobres, por oposição à extrema
pobreza do povo.
O adultério
e a corrupção dos costumes são factores de sátira ao longo da obra. Crítica a
mulher porque “entre duas igrejas, foi encontrar-se com um homem”; critica “uns
tantos maridos cucos” e não perdoa os frades que “içam as mulheres para dentro
das celas e com elas se gozam”; não lhe escapam os nobres e o próprio Rei, até
porque este considera que as freiras o recebem “nas suas camas”, nomeadamente a
madre Paula de Odivelas.
Em Memorial do Convento, José Saramago
apresenta uma caricatura da sociedade portuguesa da época de D. João V,
revelando-se antimonárquico e com um humanismo fechado à transcendência,
bastante angustiado e pessimista. Nas questões religiosas, não só usa a ironia,
como também se revela frontal nas apreciações à Inquisição e aos santos que a
ela se ligaram como S. Domingos e Santo Inácio, considerados “ibéricos e
sombrios, logo demoníacos, se não é isto ofender o demónio”. Esta acusação
resulta de toda a imagem histórica dos tempos inquisitoriais e das práticas
então havidas. Há uma constante denúncia da Inquisição e dos seus métodos e uma
critica às pessoas que dançam em volta das fogueiras onde se queimaram os
condenados.
A sátira
estende-se a Mafra e à situação dos trabalhadores; à atitude do rei em obrigar
todo o homem válido a trabalhar no convento; aos príncipes, como D. Francisco,
que se entretém a “espingardear” os marinheiros ou quer seduzir a rainha, sua
cunhada, e tomar o trono.
Linguagem e Estilo:
Em Memorial do Convento, encontramos uma
linguagem e um estilo peculiares, um afastamento às normas tradicionais de
pontuação, sobretudo no que respeita ao discurso directo. O narrador conta a
história reproduzindo as falas das personagens, num discurso próximo da
oralidade, como se estivesse junto de nós, implicando o narratório na sua
“conversa” fluida e mordaz. Não se verifica a mudança de linha no discurso
directo, não há o recurso a sinais gráficos como os dois pontos e o travessão,
aspas ou itálico. A construção da pausa efectua-se através do uso da vírgula e
da letra maiúscula.
A pontuação
de Memorial do Convento é uma marca
do estilo do autor.
Na minha opinião....
Para meu espanto, esta foi uma obra de que gostei, confesso que não li a obra toda mas do que li e da peça de teatro que vi, gostei muito. Mostra clararemte o oposto de uma relação contractual e de um amor inesgotável, para não falar de que quem está sempre em primeiro lugar é quem está no poder e não quem se sacrifica, ou seja, o povo, nós!
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